Usando o recurso da descrição densa ao modo fenomenológico, este conto foi escrito entre o primeiro e o segundo encontros do Núcleo Sambaqui diante da necessidade de decidir qual das três propostas colocaríamos em prática nos encontros seguintes.
A primeira proposta era a de oficinas de artes (desenho, modelagem em argila, teatro) acompanhadas de apresentação de palhaço. A segunda proposta era a de uma roda de plantão de dúvidas sobre saúde, já que esse é um dos principais temas requisitados pelos moradores daquela região desde 2018, quando iniciamos as atividades junto àquela população. A terceira proposta era a das entrevistas sobre fragmentos de história de vida.
Os três momentos do conto fazem referência a cada uma das três propostas, porém metaforicamente, em linguagem simbólica, dialogando com os regimes de sensibilidade estudados por Durand.
Wukong e a tríade feminina são personagens que trabalhei em "O voo da pedra em flor", estudo anterior em forma de dramaturgia, que fiz após mais de uma década de trabalho com a educação de chineses imigrantes em São Paulo. A tríade é criação minha e Sun Wukong é personagem do mito chinês chamado "A Jornada ao Oeste".
Sentado ao pé do figueirão*, Wukong1* escreve em seu inseparável bloco de papéis:
“Comungar uma performance modela
o alimento da alma, ou alimenta-se
a comunhão anímica no molde performativo?” I
O macaco nascido da pedra coloca seu lápis na orelha, barda** tão antiga quanto o primeiro encontro com seu bastão2*; recolhe-se no oco da grande árvore, e lá deixa-se demorar uma minutaiada*** a experimentá-la: a barriga aconchegante da grande figueira. Sentiu-se atravessado por suas seivas; era como consultar uma vasta biblioteca.II
Em seguida, colocou-se para fora, rompendo com a segurança daquele lugar. Bastou um movimento e já estava em pé, pronto para explorar as próximas folhas em branco de seu velho escudeiro – o bloco de notas. Lápis em riste, registra:III
“A dúvida é um degrau para o esclarecimento órfico,
ou Orfeu esclarece a dúvida dos degraus?”IV
Já saturado daquela conquista, o mestre das 72 transformações deu uma mijada mítica no tronco da árvore, para marcar que esteve ali3* e, em seguida, largou-se a perambular pelas ruas que muito lhe lembravam os sulcos da velha e querida árvore.V Enquanto cantarolava que “é chato chegar a um objetivo num instante”, inventava em sua mente uma peça que pregaria, na primeira oportunidade, no compositor daquela canção. “Quem aquele indivíduo achava que era para falar de ‘metamorfose ambulante’? Mas tinha que admitir, até que não era nada mau para um mero mortal…”, pensava o macaco, que entendia muito de seixos, tanto quanto de traquinagens, a ponto de querer aprontar com o tal de Seixas.VI
Seu pensamento foi interrompido quando encontrou a menina-pedra. Ah! Menina-pedra… a menina de seus olhos… Como não se encantar com a ingenuidade dela?4*
– É por aqui que se vai ao Oeste? – perguntou a menina-pedra ao ver o fabuloso Wukong aproximar-se.
Então, antes que o macaco rei do Monte das Flores e dos Frutos pudesse responder, chegou a mulher-pedra, em seu típico movimento fluvial, navegante em suas próprias mangas d’água.5*
–Ah, menina-pedra… você sempre tão certeira logo na primeira pergunta. Ainda bem que o macaco sabe do acaso dos ocasos – disse a mulher-pedra, em sua voz ressonante, que fazia as palavras tilintarem em nós como se fôssemos sinos.
– Trago três lanternas comigo, mulher-pedra – disse a menina-pedra, que segurava as redondas e reluzentes lanternas de papel – Uma para você, uma para mim e outra para a vovó. Ela já está vindo.
– É para acompanhar a jornada dos pés-dobrados?6* – perguntou Wukong.
– Claro, seu macaco matreiro. Tolo é quem fica pelo caminho! – respondeu a Velha, aproximando-se do grupo, que logo se viu envolto pelo manto da agradável gargalhada daquela velha.7*
As três se despediram brevemente do Wukong, que pousou seu olhar na cena que se seguiu: as três iam se afastando dele, enveredando-se ao Oeste.
Absorto nessa contemplação pintada de entardecer, o macaco, com um sereno mas profundo sorriso, apenas conseguiu esboçar as seguintes palavras, em sussurro:
– Weird sisters, weird sisters…VII Olhou para seu bloco e se lembrou de como aquelas três figuras sempre conseguiam inverter os papéis. Guardou o bloco, porque entendeu que o terceiro oxímoro acabara de ser inscrito, bem ali, naquele momento junto a elas.VIII Foi assim que ele deu por concluído o primeiro conto vertíptico.IX
Graziele Ferreira
Coordenadora do Núcleo Sambaqui
* O figueirão é a árvore ícone da Fazenda Velha, distrito de Cesário Lange-SP, principal local de atuação do Núcleo Sambaqui no 2o semestre de 2024 em parceria com o Lab_Arte. É ela que aparece na fotografia que ilustra esta página, registrada no fim do quente inverno de 2024.
** Barda é uma expressão muito utilizada entre os moradores da Fazenda Velha, que significa hábito, mania, trejeito.
*** Minutaiada é outra expressão utilizada pelos moradores da Fazenda Velha, que significa uma quantidade de tempo vagamente definida. É composta pela palavra minuto e o sufixo -ada, tal qual usamos na expressão parentaiada. Muito curiosa a pouca precisão que ela imprime na relação com o tempo, que pode corresponder a poucos ou muitos minutos.
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1* Sun Wukong é o protagonista do mito chinês chamado A Jornada ao Oeste, mesmo mito analisado em O voo da pedra em flor, um estudo de mitohermêutica em forma de dramaturgia, em que Wukong também aparece como personagem. Ele pertence ao regime de sensibilidade dramático (também chamado de crepuscular ou hermesiano), é um macaco que nasceu de uma pedra e sua trajetória é emblemática da manifestação cultural taoísta. No mito, ele aparece sempre como elemento desestabilizador das estruturas confucionistas e budistas, como o palácio de Jade, sua corte e burocracias.
2* No mito, Sun Wukong retira uma das colunas do oceano, que pertencia a um dos reinos governados por dragões. Assim como o macaco que passou a ser seu portador, o bastão é capaz de se transformar em diversas formas, inclusive adquirir o tamanho de uma agulha, que ele guardava em sua orelha, como quem acomoda um lápis ou caneta.
3* Referência ao mito A Jornada ao Oeste no episódio em que Sun Wukong tenta escapar da mão do Buda e mija no que acreditava ser uma das cinco colunas que sustentavam o céu, quando, na verdade, era um dos dedos de Buda.
4* A menina-pedra é personagem de O voo da pedra em flor, parte da tríade protagonista daquela dramaturgia, personifica o arquema do anthropos.
5* A mulher-pedra é também personagem de O voo da pedra em flor, faz parte da tríade protagonista daquela dramaturgia e personifica o arquema da Perséfone nos mistérios de Elêusis.
6* Dedico a obra O voo da pedra em flor à Jornada dos pés-dobrados. A expressão “pés-dobrados” é um termo que criei para me referir tanto aos pés femininos que eram deformados na China, lá chamados eufemisticamente de pés-de-lótus, quanto para me referir ao caráter formativo da jornada interpretativa e seu mitema do desdobrar-se em flor, no sentido de desabrochar, realizar-se.
7* A Velha é personagem de O voo da pedra em flor, faz parte da tríade protagonista daquela dramaturgia e personifica o arquema da senex puer.
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I Oxímoro é uma construção verbal paradoxal que foi usada de forma decisiva em O voo da pedra em flor, inspirada pela famosa narrativa de Zhunag Zi e a borboleta (Zhuang Zi sonhava que era uma borboleta ou era uma borboleta que sonhava ser Zhung Zi?). O oxímoro é aqui novamente usado como estilo, por sua importância destacada nos estudos do imaginário em caracterizar uma outra razão, que valoriza o pensamento paradoxal, a "hermetica ratio". Neste trecho do conto, o oxímoro foi criado com os elementos da primeira atividade aventada como intervenção local, buscando colocar em reflexão a possibilidade da pertinência dessas oficinas ao regime místico (também chamado de noturno, lunar ou dionisíaco), que seriam as oficinas de desenho, modelagem em argila e de teatro, acompanhadas de apresentação de palhaço. Segundo Gilbert Durand, os reflexos corporais da digestão e do acolhimento produzem as primeiras imagens que constituem o regime de sensibilidade místico, em que predominam as imagens da necessidade do pertencimento a algo maior, de comungar, fraternizar, dissolver-se. Daí a escolha dos termos alimento, ânima e comunhão para construir esse oxímoro.
II Aqui, conclui-se a experimentação do regime místico. O recolhimento, o aconchego no oco da árvore que funciona como um ventre, a seiva e os livros como alimento, o estado de imersão na biblioteca, bem como a absorção dos termos regionais, são todos elementos que nascem das imagens corporais que constituem o regime de sensibilidade místico.
III Este trecho marca a passagem para a experimentação do regime de sensibilidade heroico (também chamado de diurno, solar ou apolíneo), com o predomínio das imagens como: colocar-se para fora, romper, movimento rompante e a verticalização ao pôr-se em pé e ao colocar o lápis em riste como quem ergue uma espada. Existe também a referência a Don Quixote através da expressão “escudeiro”, que coloca o bloco de notas em termo de comparação a Sancho Pança, e o Wukong, a uma atitude quixotesca (Don Quixote é um dos exemplos canônicos de herói que pertence ao regime solar).
IV Outro personagem solar, Orfeu, no mito gregro, encarna a questão do ânimus, contrapondo-se à sua ânima perdida, Eurídice. É a sua dúvida que o faz perdê-la irremediavelmente durante a subida do reino de Hades para o reino dos vivos quando ele olha para trás. O plantão de dúvidas sobre saúde, segunda atividade aventada como intervenção local, possui muitos elementos que podem ser analisados como pertencentes ao âmbito da racionalidade, do iluminismo, da hierarquia por especialização profissional. Vale frisar novamente: apenas uma análise da possibilidade, pois muitos outros vetores poderiam atuar na configuração das imagens da dinâmica, caso a atividade viesse a ser efetivada. Esse segundo oxímoro é construído a partir dos termos dúvida, degrau, esclarecimento e Orfeu, que mobilizam imagens pertencentes ao regime heroico e que nascem das imagens corporais de verticalidade, do vigor e do domínio visual, atreladas aos membros do sistema motor, coluna vertebral e à visão. Por sua vez, essas primeiras imagens que experimentamos corporalmente produzem novas imagens pertinentes a esse registro, como o domínio da experiência por meio da racionalização, a hierarquização, os vanguardismos e as ideias de progresso e de supervisão.
V Trecho que marca a passagem para a experimentação do regime dramático. A escolha pela expressão inicial “já saturado daquela conquista”, para indicar o momento transicional, não foi aleatória. Na mitohermenêutica durandiana, a predominância operacional do regime diurno pode converter-se na predominância do regime noturno e vice-versa. O ponto que marca o momento transicional é chamado de saturação. A mijada como troça e o largar-se a perambular são as primeiras expressões que aparecem como movimento das imagens em direção ao regime dramático, também chamado hermesiano ou crepuscular, termo que bem indica o seu caráter transicional e cíclica, a operação da conciliação de opostos (dia e noite, sol e lua, heroico e místico), a presença do terceiro incluído, a conformação de tríades. As imagens corporais de ritmo, constância e ciclo são experimentadas pelo feto na sua gestação, em contato com o ritmo ternário das batidas cardíacas da mãe, no movimento do fluxo do líquido amniótico, na experiência narrativa do sonho e nas experiências de contatos e trocas através da pele.
VI Refere-se à popular canção Metamorfose ambulante de Raul Seixas. Nesse trecho, trouxemos os aspectos mais divertidos desse personagem, cujo um de seus vários epítetos, mestre das 72 transformações, transparece a pertinência do diálogo com essa canção. O trocadilho entre seixos e Seixas, fica por conta de sua natureza lítica; vale lembrar que o macaco nasceu de uma pedra.
VII Weird sisters é uma expressão utilizada para se referir às parcas da mitologia grega, a tríade do fio da vida e do destino, constituída por figuras femininas muitas vezes representadas com aspecto sinistro - Cloto, Lachesis e Átropos - responsáveis por tecer (Cloto), puxar e medir (Lachesis) e cortar (Átropos) o fio da vida de cada pessoa. A raiz da palavra weird vem do radical de origem proto indo-germânica wer-, que significa virar, dobrar – e que também está presente nas palavras versátil, vértebra, introverter e extroverter, inverter e converter, divergir e convergir, subverter e reverter, verso, versão, universo, vertigem e vórtex.
VIII Trecho que marca o ápice da experimentação do regime crepuscular. É justamente a jornada interpretativa do próprio Wukong que nos lembra da importância do exercício narrativo. E é também o que buscamos na terceira proposta de atividade – a entrevista sobre fragmentos de história de vida – que se apresenta como uma proposta alternativa, que pode inverter os papéis, tal como fazem as três figuras femininas da menina-pedra, a mulher-pedra e a velha. Não mais polarizados na comunhão e pertencimento do regime noturno (potencialmente presente na proposta das oficinas de linguagens artísticas), nem no esclarecimento e progresso do regime diurno (potencialmente presente na proposta de roda de plantão de dúvidas sobre saúde). A terceira proposta, a das entrevistas, propõe que o próprio entrevistado realize o exercício narrativo, para o qual, necessariamente, terá que juntar eventos pontuais de seu percurso numa narrativa – que é, como já dissemos, um exercício crepuscular por excelência. A partir do primeiro encontro, também contamos com a colaboração de um jovem desenhista muito talentoso, morador daquela região, que realizará o exercício de composição em linguagem visual para ilustrar partes da atividade. Pelo desafio de unir elementos diversos na composição de uma cena, tal proposição também mobiliza as dinâmicas crepusculares.
IX Vertíptico é um termo aqui criado a partir da junção da palavra tríptico (modelo de quadro dividido em três partes, que eram pintadas separadamente, mas articuladas para formar uma só peça), com a raiz proto indo-germânica wer-, que dá origem à expressão inglesa weird sisters (a tríade do fio da vida e do destino) e que se refere às parcas ou moiras da mitologia grega.