O conceito ou as pessoas?

"A nossa época, destruidora de mitos e de mística, pretende-se votada ao regime da antítese e, por isso, a todas as tentações do exagero hiperbólico. Mas há muitos indícios que mostram que essa moda arquetípica em breve terá passado. A nossa civilização racionalista e o seu culto pela desmistificação objetiva vêem-se submersos de fato pela ressaca da subjetividade maltratada e do irracional. Anarquicamente, os direitos a uma imaginação plena são reivindicados quer pela multiplicação das psicoses, pelo recurso ao alcoolismo e aos estupefacientes [...]." (Durand, 2012)


Ideário, ideologia, ideia força e mitopoiética são noções importantes no aprofundamento das investigações no campo do imaginário, cuja compreensão expande os estudos para a diferenciação necessária entre as representações coletivas (via dos conceitos estagnados) e da esfera noológica (via das imagens em movimento).


Na proximidade do dia de Finados, fizemos memoriais poéticos em forma de homenagem* a alguns participantes que faleceram ao longo da jornada do Sambaqui. Temos realizado também entrevistas a moradores atuais da Fazenda Velha sobre fragmentos de suas histórias de vida. Tanto os memoriais poéticos quanto as entrevistas foram feitos como exercício da via mítica da dinâmica do imaginário.

Oposta à via mítica é a via racionalizante, que tem como partida a perda do movimento das imagens, que passam a assumir o caráter de conceitos estagnados em forma de ideias força. A ideia força do patriarcalismo, por exemplo, comporta em si as ideias força de posse privada, autoridade do pai, submissão dos diferentes, controle territorial, disciplina, hierarquia, status quo, raça, terror psicológico, dentre outras.


A partir das ideias força nascem os discursos ideológicos. O machismo e as violências organizadas (como bullying, linchamento, hostilização coletiva pela vizinhança) são duas manifestações de ideologias que surgem a partir da ideia força do patriarcalismo. Os discursos ideológicos, por sua vez, comportam-se dentro do ideário, o máximo da racionalização; nesse caso, o ideário totalitário.


Como em grande parte da nossa sociedade, podemos observar, ao longo das atividades em campo, a adesão e operacionalização da via racionalizante pela comunidade em questão.

Na raiz das duas vias, no entanto, está o mesmo nascedouro da situação mítica que ambas compartilham. Esse nascedouro, que se localiza antes da bifurcação das vias, chama-se imagem arquêmica.

Quando as imagens perdem seu movimento, abre-se a via racionalizante pela atuação dos conceitos estagnados; quando seguem seu movimento, abre-se a via mítica pela narrativa das imagens em sua dinâmica. 


Embora o diagrama¹ possa sugerir certa linearidade consecutiva, é possível entender que as duas vias existem como probabilidades simultâneas.

Na via mítica, essas imagens arquêmicas encontram um arranjo narrativo, também chamado de mitopoiésis, que é o paralelo das ideias força da via racionalizante. A narrativa mítica (o mito em si) é o paralelo da ideologia e seus discursos da via racionalizante. Por fim, uma tradição cultural, máximo da via mítica, é o paralelo do máximo da racionalização, que é o ideário.


Quando entrevistamos sobre fragmentos de história de vida, estamos solicitando um exercício de mitopoiésis por parte de quem tem diante de si a tarefa de encontrar um arranjo narrativo para suas experiências. Quando elaboramos um memorial poético em forma de homenagem, estamos realizando essa mesma tarefa mitopoiética.

Então, insistir na atuação pela via mítica não é sinônimo de desconsiderar as análises da via racionalizante, é sim insistir na importância da busca pelo aprofundamento da compreensão dos fenômenos em sua raiz, até chegar no nascedouro da situação mítica instauradora, que é a imagem arquêmica.

A forte e numerosa presença da imagem da ânima ressentida observada ao longo dos exercícios me remeteu a buscar nas raízes da mitologia ocidental, recorrendo a Joseph Campbell, as imagens arquêmicas que atuam nessa situação. 

"Nos mitos posteriores patriarcais, masculinos, tudo o que é bom e nobre foi atribuído aos novos senhores deuses heroicos, deixando para os poderes nativos naturais apenas o caráter de obscuridade. A isso foi acrescentado também um julgamento moral negativo. Como um grande volume de evidências demonstra, as ordens social e mítica dos dois estilos de vida contrastantes opunham-se. Onde a deusa tinha sido venerada como a concessora e mantenedora da vida, bem como consumidora dos mortos, as mulheres - como suas representantes - tinham ocupado uma posição superior, tanto na sociedade quanto no culto. Uma tal ordem de costumes sociais e religiosos de orientação feminina é chamada, de uma maneira ampla e geral, a ordem do Matriarcado. E oposta a essa está a ordem do Patriarcado, marcada pelo ardor da eloquência justa e pela fúria do fogo e da espada.” (Campbell, 2004)

Na narrativa do ciclo do rei Artur, famoso exemplo do soerguimento do ânimus pelo rebaixamento da ânima, existe um par de imagens arquêmicas funcionando juntas: a imagem arquêmica de ascensão e coroamento do rei Arthur e seu par oposto por enantiodromia (processo de equilibração) que é o desaparecimento de Avalon, ou seja, a dissolução da ânima (força feminina) para o estabelecimento do reinado de Artur (ânimus patriarcal).

Esse rebaixamento da ânima ao caráter obscuro, cujo movimento Campbell busca demonstrar dentro da mitologia ocidental, também se manifesta em situações diversas na dinâmica do cotidiano estudado.

Estamos, portanto, priorizando a via mítica em detrimento da racionalizante, porque nesta última as imagens estão destituídas de movimento, trabalham justamente com conceitos estagnados das ideias força. Entendemos que valorizar a pessoa em sua totalidade dinâmica seja um compromisso importante no processo de pesquisa. Então, não se trata de obscurecer fatos para colorir outros mais palatáveis, como em homenagens superficiais bajuladoras. Trata-se de um exercício epistemológico que comporta diferenças tidas como opostos irreconciliáveis em outras abordagens. Ser mulher e, ao mesmo tempo, virtuosa; ser agente de bullying e, ao mesmo tempo, pessoa querida; ter um estrutura lunar e, ao mesmo tempo, funcionamento solar. Ficássemos apenas com conceitos, e a pessoa estaria neles subsumidos ou seria tratada por eles de maneira apenas parcial. Pior, os conceitos, parciais por sua natureza e consituição, exigiriam a fabulação para tentar dar conta da realidade rechaçada. 

Então, parafraseando o título famoso do livro "O lucro ou as pessoas?", no nosso exercício mitohermenêutico podemos colocar: O conceito ou as pessoas? Ficamos com as pessoas.


"O ponto de vista patriarcal é diferente da visão arcaica anterior, por separar todos os pares de opostos  - macho e fêmea, vida e morte, verdadeiro e falso, bem e mal - como se fossem absolutos em si mesmos e não apenas aspectos da entidade maior da Vida." (Campbell, 2004)

"Porque foi frequentemente dito, sob diferentes formas, que vivemos e que tocamos a vida, dando assim um sentido à morte, não pelas certezas objetivas, não por coisas, casas e riquezas, mas por opiniões, por esse vínculo imaginário e secreto que liga e religa o mundo e as coisas do coração da consciência; não só se vive e se morre por ideias, como também a morte dos homens é absolvida por imagens." (Durand, 2012)


1 Diagrama elaborado a partir de DURAND (2012), FERREIRA-SANTOS (2021) e PAULA CARVALHO (1990).

* Um dos memoriais poéticos como homenagem está disponível em nosso Instagram. Caso queira saber mais, entre em contato.


Campbell, Joseph (2004). As máscaras de Deus: mitologia ocidental. São Paulo: Palas Athena.

Durand, Gilbert (2012). As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes.

Ferreira-Santos, Marcos (2021a). Crepusculário: conferências sobre mitohermenêutica & educação em euskadi. São Paulo: FEUSP/Editora Zouk, 3a. ed. revista e ampliada.

Paula Carvalho, José Carlos (1990). Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Janeiro: Imago.


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